O inverno

Poema concebido em Campinas [SP/BRA] jul./2008

Argollo Ferrão, A. M. de (2008). O inverno [web]. Disponível em <http://argollo.org/tri/tri3/tri3-101/>.

ISBN 978-85-908725-0-4 / Publicado em 2008

Argollo, A. (2008). O inverno. In A. M. de Argollo Ferrão (Ed.). Entre símbolos e a perfeição (pp. 108-109). Campinas [SP/BRA]: O Autor.

O inverno
Foi um longo e tenebroso inverno
E eu bem sei que adormeci,
Sonhei, dormi como em colo materno,
Quem não me viu foi porque sumi.

Foi um longo e tenebroso inverno
E eu me recolhi bem cedo,
E logo percebi que era só
Na primavera que eu voltaria a ficar desperto.

Foi um longo e tenebroso inverno
Em que eu saí de cena,
Em estado letárgico, apático e asséptico,
Guardei-me num claustro em rito fraterno.

Foi um longo e tenebroso inverno
E foi-se o tempo em que eu me comunicava
Em versos cálidos, e me sentia pleno, e transitava ileso
Até que, experto, era a um tempo dois: interno e externo.

Foi um longo e tenebroso inverno
E o vento batia lá fora como bate aqui dentro também,
No fundo de minh’alma, até hoje ele bate,
Bate e não responde – ninguém.

Foi um longo e tenebroso inverno
E até pensei que não fosse mais ter fim,
E que o sol, quando voltasse, estranhasse
A paisagem local, tal e qual estrangeiro na praia, de terno.

Foi um longo e tenebroso inverno
E eu sorria para não chorar,
Ouvia a voz do vento a me chamar,
Rogando que eu mudasse o meu padrão moderno.

Foi um longo e tenebroso inverno
E eu quase congelei de frio.
De São Paulo, fui ao Rio, e voltei...
E fui e voltei e fui, num ciclo hodierno.

Foi um longo e tenebroso inverno
E cada vez que me lembro do tempo
Em que eu era tratado como um rei,
Penso que desperdicei o que jamais imaginei.

Foi um longo e tenebroso inverno
Mas não foi mau vê-la partir com seu amor,
Feliz, certa de que fez o que fez
Porque eu não fiz o que quis.

Foi um longo e tenebroso inverno
E a música fazia-me crer que eu voltara
Aos anos setenta ou oitenta,
Não sei ao certo, mas...

Foi um longo e tenebroso inverno
E os beijinhos que ganhei deram-me a certeza
De que, embora com muito frio, era certo
Que eu não dormiria naquela noite – coberto.

Foi um longo e tenebroso inverno
Sem roupa, sem medo, sem lenço e sem documento,
Nu, e só com ela, naquele mágico e sublime momento,
Certifiquei-me de que existe mesmo o tal amor eterno.

Foi um longo e tenebroso inverno
Mas a primavera chegou, enfim,
Com as flores, o sol, as cores de volta ao meu jardim,
Campo mais belo que há entre o céu e o inferno.

Foi um longo e tenebroso inverno
Mas acordei feliz, e registrei sem lapidar
Estas singelas e atípicas letras, simbólicas e perfeitas
Neste atemporal e fatídico caderno.

Pois afinal me redimi
E sob onipotente beneplácito Paterno,
Valente e confiante atravessei
O meu mais um longo e tenebroso inverno.